sexta-feira, 26 de março de 2010

Praças de touros de Lisboa (III)

A praça de touros do Campo de Santana, uma das de maior historial de Lisboa, foi inaugurada em 3 de Julho de 1831. Na presença do rei D. Miguel e da infanta D. Maria da Assunção, sua irmã, foram lidados, nada menos que 16 touros, pertencentes à ganadaria real. A cavalo luziram-se João Ferreira Grilo e António Máximo de Amorim Veloso, e a pé os espadas Sebastião Garcia e Pedro José Rodrigues. Actuou ainda um grupo de forcados, presumivelmente do Ribatejo.
Diz o conde de Sabugosa, no seu livro «Embrechados», que a decisão de construir a praça partiu do próprio soberano. «Um dia que o infante D. Miguel, então aclamado rei, determinou dar uma tourada em benefício duma obra de caridade, soube que o empresário da velha praça do Salitre», José Serrate, «levantava dificuldades e regateava pelo preço do aluguer». D. Miguel mandou então chamar o seu amigo Sedvem, famoso cavaleiro, «encarregou-o de dirigir a obra de construção imediata de uma nova praça, sem olhar a despesas, e fez publicar um decreto que dava à Real Casa Pia o privilégio da receita daquela e de outras praças nalgumas léguas em redor. Ficou o D. José Serrate a chuchar no dedo e o público contente com o circo novo e com a pirraça feita ao onzeneiro director.»
Apesar da piada desta versão sobre a origem da velha praça, os factos parecem ter sido diferentes. Em primeiro lugar, o privilégio da Casa Pia de que fala o conde de Sabugosa, foi atribuído àquela instituição logo em 1821, por decreto de D. João VI. O que D. Miguel fez, segundo a edição de 8 de Setembro de 1830 da «Gazeta de Lisboa», foi confirmar este direito, a requerimento do administrador - hoje chamar-se-ia provedor - da Casa Pia, António Joaquim dos Santos. Afirma D. Miguel que «Hei por bem confirmar a mercê de que goza a mesma Casa Pia, e que lhe foi conferida por el-rei meu senhor e pai, que Santa Glória haja, de serem somente em seu benefício permitidas as corridas de touros na cidade de Lisboa.»
No mesmo decreto, e também a requerimento do provedor, diz o rei: «E hei outrossim por bem, deferindo ao que o dito administrador me suplicou, conceder licença para que no Campo de Santa Ana se possa construir para o dito fim, uma praça de touros na forma da planta que será com este; sendo a despesa da sua construção suprida pelo cofre da sobredita Real Casa Pia, com tal regularidade, e economia, que por este motivo não falte às outras despesas indispensáveis daquele tão subtil estabelecimento.» Ou seja: D. Miguel licencia a construção da praça, de acordo com planta anexa ao decreto, correndo os custos do empreendimento por conta da Casa Pia.
A praça localizar-se-ia onde actualmente se encontra a Faculdade de Medicina. A sua planta foi da autoria do arquitecto camarário Malaquias Ferreira Leal e, rezam os registos, era feita de madeira e tinha capacidade para seis mil espectadores.
Pelo Campo de Santana passaram afamados cavaleiros amadores, caso do conde de Vimioso e do marquês de Castelo Melhor, e também profissionais, como Francisco Carlos Batalha e Manuel Mourisca Júnior. Na lide dita à espanhola, os espectadores aplaudiram os históricos matadores Cúchares, Frascuelo, Lagartijo, Mazzantini Gordito. Este último, considerado no seu tempo um ás das bandarilhas, terá aprendido boa parte da técnica com os bandarilheiros portugueses que se exibiam no Campo de Santana. Entre eles, destacavam-se João Alberto Rebelo (João Barbeiro), Joaquim Russo, José de Sousa Cadete, António Roberto da Fonseca e seus filhos, Roberto e Vicente, João da Cruz Calabaça, José Joaquim Peixinho e Manuel Botas.
«O público elegia favoritos. Gostava das suíças loiras dos irmãos Robertos, do penteado burocrático do gordo Peixinho», escreve o conde de Sabugosa. «Tinha também antipatias invencíveis. E ai da vítima que pretendia desforçar-se, manifestar mesmo um movimento de mau humor, resistir!»
O encerramento e demolição da praça do Campo de Santana, em 1889, foi ditado pelas suas escassas condições de segurança, que faziam temer um desastre semelhante ao ocorrido no teatro Baquet, no Porto, que provocou mais de cem mortos. O desaparecimento da praça provocou as mágoas de muitos lisboetas. Prossegue o conde de Sabugosa: «Na poeira que levantavam ao desmoronarem-se os muros pintados a vermelho, as tábuas azuis e brancas, as trincheiras e os palanques, iam os últimos ecos de muitas tardes alegres, do estalar festivo dos foguetes, dos trombones desafinados da fanfarra da Casa Pia, mugidos dos bois, pregões do homem dos pastelinhos e água fresca, assobios estrídulos da multidão, piadas do sol gritadas por vozes avinhadas e roucas troçando do lavrador, do inteligente, lançando trocadilhos petulantes, que faziam rir cinco mil bocas numa gargalhada.»

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