«Ah é verdade! Estou agora aficionado da festa de toiros... Aficionado é como quem diz; os toiros agora doem-me. São coisas do coração, calcula tu, quando há gente a quem a corrida de toiros horroriza pela mesma razão irracional. Doem-me os toiros e não ando lá, embora vá às arenas de Espanha sangue meu.» Assim escrevia Alves Redol (1911-1969), na edição de Julho de 1960 da revista «Almanaque», num extenso artigo em forma de carta, intitulado «Sombra e Sangue». O destinatário da «carta» é Federico García Lorca, o poeta das suas «dores maiores». Embora sabendo que Federico não poderia ler a missiva -foi fuzilado em 1936, nos primórdios da Guerra Civil espanhola- o escritor português conta-lhe o que o levou a Sevilha, num dia da Feira de Abril de 1960: «um toureiro que é de Vila Franca e se chama José Júlio».
Como bom ribatejano, Redol era aficionado. «Brinquei aos toiros quando era menino. Fui cavaleiro por causa de um casaco de veludo lavrado que minha mãe me fez. Nenhum outro rapaz da minha rua se parecia assim tanto com um cavaleiro. Escarranchava-me num pau com uma cabeça de cavalo enfiada na ponta, fazia as cortesias com grande dignidade, e arranjei certa arte, e algum desembaraço, a cravar farpas em canastras de sardinha». Depois o escritor cresceu, esteve «para entrar numa corrida de beneficência como andarilho, fiquei-me por aficionado, o que esmaeceu em mim com as andanças da vida. Uma vez por outra ateava-se a labareda e lá ia a uma tourada, confesso que sem lamúria pelos 'pobres animais', talvez porque no Ribatejo a gente sabe desde menino o que é um toiro. E há coisas que o berço dá e só a tumba as leva.»
Porque a «labareda» se lhe ateou, mas também porque na Maestranza iria estar «sangue» seu, o autor de «Gaibéus» acompanhou José Júlio a Sevilha, para o ver lidar toiros de Cobaleda, ao lado de António Ordoñez e Manolo Vázquez, na tarde de 27 de Abril de 1960.
Eram fortes os laços que ligavam o matador vilafranquense e Alves Redol. Orfão de pai aos quatro anos, José Júlio foi recolhido pela família do escritor, que o apoiou no seu sonho de ser toureiro. Agora, José Júlio, «sobrinho neto daquele Venâncio que pegou toiros, e filho do Júlio Antunes», pisava o
albero de Sevilha, num cartel de figuras. Redol tinha que ver e narrar a gesta.
Porém, o coração não o autorizou a cruzar os umbrais da Maestranza. Tolhido pela angústia, Redol fica «cá fora com os pobres que não têm pesetas para ir aos toiros e os vendedores de tudo que por ali aparecem.» É da rua que imagina José Júlio no pátio de quadrilhas, vestido de azul-celeste e oiro, «de boca um tanto seca, com os seus olhos verdes um pouco velados pela responsabilidade da competição.» Mas o escritor não aguenta a espera. Atravessa a avenida e vai debruçar-se sobre o Guadalquivir, em cujas águas 'vê' José Júlio abrir «o seu capote de percal para um quite.»
O espectáculo prossegue: «O Zé já agarrou num par de bandarilhas; pôs-se a ver-lhe o bicos. Sevilha sabe como ele bandarilha, já o viu, já lhe deu triunfos, e pede música.» Mais à frente: «Está já com a muleta na mão. Aplausos, olés, silêncio. E uma ovação frenética. Deve ter-se cingido, num misto de festa e drama que ele tão bem sabe imprimir ao que faz.» De súbito, uma ambulância. «Sí, José Júlio, el portugués... Herido! (...) Ferido como?!... Não pode ser.»
Era verdade. Ao terceiro passe, o
cobaleda colhera José Júlio, «empitonou-o por uma perna, junto ao joelho, e o matador ficou na mesma, sem drama, não teatralizando como muitos que dramatizam sustos». À noite, à cabeceira do ferido, Redol troca impressões com ele. «Era um toiro difícil (...) Difícil e baixel... Devias tê-lo despachado. -Os toiros, respondeu, encarando-me, não são para despachar mas para tourear. Há que parar-lhes na frente...»
Meditando na resposta, Redol vai até à janela. Contempla Sevilha que resplandece com as luzes da feira. E vê a sombra de Lorca entre um grupo de ciganos que segue um tocador de viola. «Que fariam os ciganos com o sangue de um toureiro?!»